Eu sei que talvez ninguém leia estas minhas memórias, mas não deixo de aqui relatar o meu pesar e todo o meu descontentamento com os pesqueiros da vida.
Nasci numa lagoa, bem pequenininho e junto com outros tantos irmãos. Minha vida desde então foi ir por ai. Comia um monte de coisas gostosas, como carninhas de rã, uns fungos de pedras e coisas verdes como folhas de árvores que por ali nadavam.
Eu me lembro que cresci veloz e a minha família também se multiplicava. Adorava a quietude do lugar. Porém, tudo mudou, quando inventaram de transformar minha casa-lagoa em pesqueiro. É claro que eu só vim, a saber, o que era um pesqueiro quando a nona-tartaruga nos explicou. Foi um choque, pois queriam as nossas carnes para comerem. Que loucura!
A vida mudou tanto e tudo se tornou um grande pesadelo, verdadeiro filme de terror. A cada dia desapareciam peixes, famílias inteiras se perdiam no desespero da saudade dos seus entes queridos.
Até que chegou a minha vez. Certo dia observei que nas margens havia uma menina, um menino e dois adultos. Eles conversavam alegremente e diziam: “queremos peixes”. Eu fiquei trêmulo e parti desesperadamente para o fundo da lagoa, outrora tão segura e agora tão assombrada.
Os minutos passaram e a minha barriguinha roncou fazendo os meus medos voarem e eu fui atrás de um pouco de comida, logo percebi uma minhoca abanando o rabo para mim, sem nada pensar dei um salto e a coloquei inteira na boca. Pensando em sentir aquela carne gelatinosa e saborosa, senti meu próprio sangue na goela, era um bem afiado anzol que transpassava a minha humilde pele e ameaçava levar a minha vida.
Lutei bravamente e vi o sol aparecer mais brilhantemente quando fui alçado para fora da minha casa, do meu lugar de nascimento, do meu lar, daquelas águas tão frias e ao mesmo tempo tão acolhedoras.
Mas, pensei, este quarteto de humanos fétidos, grandes e malvados não terão acesso as minhas escamas, voarei em suas gargantas, beijarei as crianças, levarei seus óculos de sol, também a carteira dos adultos e todo o estoque de minhocas que se encontram no pote, quebrarei suas varas em suas cabeças e mergulharei minhas nadadeiras em vossas bocas e os puxarei para a lagoa e colocarei os anzóis aqui perdidos em vossas línguas.
Eu debatia quando percebi que novamente estava livre e havia vencido a luta contra a vara de matar peixes. É claro que não fiz nada daquilo que eu gostaria de ter feito com os adultos, mas aquelas crianças porqueiras não perdem por esperar, pois eu as visitarei qualquer dia com o meu exército de peixes que flutuam no ar, chamarei também os meus amigos cavalos marinhos, peixes espadas e lesmas soltadoras de gosmas.
O peixe acabou aquelas memórias, que escrevia com a boca no fundo da lagoa e partiu. Acredito que ele nem percebeu que ia com um novo adereço, um piercing na parte superior da boca, uma vez que ele havia estourado a linha do pescador e levava consigo o anzol.
O quarteto partiu das margens da lagoa com dois peixes dentro do saco verde. Nem deram conta da mágoa que causaram naquele peixe que levou uma das pontas de uma das suas varas. Para eles estava tudo certo. Foram felizes para casa. Era hora do almoço e já estavam atrasados.
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