sábado, 8 de janeiro de 2011

Do fim para o começo


Silenciem-se as rodas de conversas. Consternem-se os afoitos e sorriam os puros de alma, ainda que conspurcados em suas vestes precárias e pouco eficientes na retenção do calor. Esqueçam-se dos homens e das mulheres fortes, pois eles acabaram de tombar; suas narinas pararam de permitir a entrada de ar, e, na agonia, eles partiram para a cidade dos mortos.

Os sonhos antes tão dourados pularam do mundo imaginário e agora assombram as próprias mentes que os produziram. Por certo estão irritados com a falta de proteção e com a dureza que causam em suas peles brilhantes e frágeis os raios do mundo palpável. Em seus mundos os sonhos são crianças imortais e para sempre despreocupadas, mas aqui eles desvanecem e partem ligeiro para o nada.

O riso louco, a mão trêmula e o caminhar vacilante apenas indicam que o corpo vai mal, está adoecido. Quem sabe o corpo até implora insistentemente por uma cama para descansar e talvez dormir ou então anseia por um chão duro e rústico para escorregar e de uma vez por todas quebrar-se em mil pedaços, a fim de que possa libertar de suas entranhas o espírito que o anima e que sofre constrangido e limitado dentro de um espaço, que já foi mais dinâmico, mas que agora, envelhecido, está pequeno e assustadoramente encurvado.

Os olhos apresentam um cinza opaco, e o brilho já partiu há muito tempo; as imagens registradas no cérebro não serão mais recuperadas, pois o “disco rígido” se perdeu para sempre. A angústia transformou-se em paz inabalável. Os ouvidos se fecharam, e a boca que tanto som produziu não vai mais de dizer um a sequer. O fim tão desejado chega sem comemoração, apenas uma pessoa está presente, e não é por vontade própria, mas sim por obrigação. Ela precisa resolver questões burocráticas e emitir um atestado qualquer, afirmando alguma coisa sem sentido.

As paisagens, antes tão belas, foram substituídas. O muro de concreto, antes tão imponente, agora demonstra pouca altivez. Os índices caem sem explicações. Os testemunhos deixaram de ser relevantes. As coisas ficaram abandonadas; quase nada sobreviveu. O ciclo ainda vai continuar por milênios, mas agora os vizinhos são outros, e as fechaduras serão trocadas. As chaves estão obsoletas.

Os toques continuarão a ser maquinalmente reproduzidos, cada vez mais lentos, até cessarem, mas ainda por muito tempo poderão ser ouvidos e sentidos, sem o mesmo interesse de outrora. As coisas se transformam, ganham novas roupagens, suas aparências ficaram diferentes, nem melhores nem piores. As mudanças de quando em quando são prudentes, boas e necessárias. O sussurrar também não abandonará os cantos cavernosos, muito menos os incautos deixarão de presenciar e ouvir nos finais de tarde murmúrios e lamentações.

A perda será paradoxal. Nesses instantes será inevitável a presença de um sentimento, qualquer que seja ele; haverá associação com desolação, dor e ânsia pelo amanhã. Mas ninguém deverá ser responsabilizado, porque os corpos guardaram em seus DNA’s a certeza do que ocorreu e o caminho para o encontro com a verdade inexorável. Haverá mutação, e a espécie humana terá a possibilidade de reconciliar-se com o Criador. Os seres que andavam juntos sucumbiram, apenas o bichinho de estimação continua a olhar para o céu com uma interrogação que jamais conseguirá formular por sua natureza irracional.

O afastamento dos que eram próximos, quase siameses, produzirá para sempre dores inconciliáveis. O amor arrumou as malas e deixou o vazio, no momento ocupado por um ar gélido e palpável. A saudade foi assassinada. O rancor adormeceu. A ira foi aprisionada, e a masmorra anda muito mais agitada do que costumava ser. Os juízes da Terra foram substituídos. Os acusadores deixaram para depois, e a terra, entregue à própria sorte, sangrou até fechar-se ressentida pela impossibilidade de morrer. Houve recusa, e o alimento deixou de ser servido.

O mato cresceu, mas a vida não floresceu. O sino da igreja mais alta, do bairro mais elevado da pequena vila, caiu em certa madrugada, pois a falta de manutenção, de serventia e de alegria fizeram-no perceber que era preciso muito menos para desistir. A alegria de outros tempos tinha sido esquecida e ficou fora de moda pela falta de sua prática. Um piar de uma coruja, símbolo da sabedoria, foi a trilha sonora para um fim que a ninguém preocupou. Logo o sino seria derretido em uma forja qualquer. O tempo passava, e ninguém se importava.

O calor escaldante tornou a vir, mas não durou muito tempo, menos do que uma estação, pois o frio o engoliu e a neve, que nem sequer fora chamada, deu o ar da graça. Fina e constante, ela não negou a queda e cobriu a terra, transformando o marrom e o verde em branco, cor da paz. O mato crescido e o alimento, que, contrariando determinação da mãe natureza para que nada nascesse, insistiu em aparecer, e algumas poucas barrigas foram alimentadas. O martírio seria poupar-se, e muito pior seria entregar-se para as esquinas venais do bairro sem energia elétrica e cheio de gatunos. Os espectros dominavam, e a democracia havia sido deixada para outra oportunidade. A democracia tinha sido uma ideia ultrapassada. Agora o regime era outro, com um nome bem difícil de assimilação e pior ainda de ser pronunciado.

O horizonte estava com uma coloração interessante, seria difícil não haver esperanças; se houvesse rosto, haveria sorriso. Era preciso ter mais do que alma, era preciso energia indestrutível. A lágrima que tantas vezes rolou havia deixado de existir. O recrudescimento foi bom apenas para o descanso momentâneo, mas jamais seria produtivo, pois a estagnação sabidamente é prima pobre do tédio e irmã da preguiça. Tudo isso teria sido contraproducente se não existisse nobreza nos espíritos que, elevados, não se entregaram a depressões sem causas aparentes.

A pedra rolaria anos mais tarde. Os rios rapidamente voltariam a sulcar a terra. O mar já havia se aprofundado e criaturas nos lugares mais abissais surgiam, cegas e já velhas. A vida ressurgia ainda incipiente, sem palavras para dizer um simples oi para o mundo, ainda sem forma e muito vazia. Alguém achou tudo isso emocionante, nem por isso houve comemoração. Os séculos se transformariam em milênios antes de haver qualquer tipo de cerimônia ou efusivos cumprimentos.

Foram delineados os pensamentos. Houve um traçado, e um caminho surgiu, mais errante do que o voo cego de um morcego. Os caminhos posteriormente se fecharam e foram perdidos e refeitos, demarcados inúmeras vezes. As coisas caminhavam e os obstáculos eram contornados, sem deixar que a correnteza das ideias e a força dos ventos arrefecessem as boas energias que iam surgindo pela estrada, que era mais flexível do que o necessário.

A ordem do que se sucedeu foi perdida pela velocidade dos acontecimentos. A verdade é que agora os porquês pouco importavam, já que a maior confusão está dentro das crenças das pessoas. A certeza desejada por quem almeja a segurança de uma conclusão é de que as coisas são eternas. Por mais que terminem em uma determinada forma, sobreviverá em outras maneiras, pois os seus registros aparecerão de quando em quando para dar um alô para qualquer desavisado que seja por eles seduzido, daí para frente tomados e definitivamente ocupados.

A sedução é jogo que não se termina e em que às vezes se entra sem querer, arena em que se promete o que nem sempre se cumpre e onde se desejam coisas que de fato nunca foram motivos para chegar aos desatinos que são cometidos em nome dos anseios. Poucos acreditam, mas a culpa foi assassinada em uma das primeiras guerras e até hoje dizem que ela existe. Ledo engano, pois quem hoje faz o papel da culpa é o seu irmão, o arrependimento, que envelhece as pessoas e coloca em suas mentes a pulsão pela morte.

O povo às vezes drena as qualidades e fica com as mazelas. Por que não jogar fora os detalhes e ficar com as virtudes? Despreze a pressa e abençoe as almas corajosas, que, possuindo um desprendimento maior do que suas mais altas necessidades de subsistência, lançam-se nos mares do futuro. As incertezas, titubeando por vezes e dobrando os joelhos em outros vales, antes que suas forças de fato as abandonem, prosseguem fervorosamente, mirando seus objetivos, ainda que sejam miragens. Para essas almas suas visões são combustíveis sem os quais o sepulcro frio seria a única companhia desejável.

Do final para o começo, já aconteceu na história. Reclame se quiser, pare se desejar ou espere a próxima nuvem encobrir o sol e caminhe para qualquer lugar. O lodo não o atrasará, pois já estava previsto. Lembre-se: ainda o esperam do outro lado do rio e dizem que lá é onde as coisas boas realmente acontecem. A existência do homem é muito mais do que meros dilemas, ela é tão grande que daqui da Terra não se enxerga sua dimensão, pois estamos perto demais dela; os contornos estão borrados, mas um dia comprovaremos que tudo foi grandioso, que valeu a pena lutar, que cada segundo vivo e cada suspiro foram dádivas que daríamos muito para voltar a desfrutar.

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