terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O menino e o diabo


Narravam os homens antigos, nas rodas de conversas, feitas perto das fogueiras e sob o brilho do luar histórias terríveis, daquelas que nos tiram o sono e a paz para ir ao banheiro sozinhos.

Algumas delas eu ainda me lembro muito bem, outras tantas desceram aos porões do meu inconsciente e lá estão devidamente armazenadas, mas não duvido que forjaram a minha personalidade.

Ainda há pouco tempo recordei-me de uma história, que inadvertidamente tive a péssima ideia de contar ao primeiro garoto que me pediu uma história, ele ficou com aquela carinha de bebê fazendo sujeira na fralda, sabe daquelas que maltratam o bichinho e os deixam com umas carinhas de dar dó? Então, foi uma carinha parecida com esta que o menininho fez.

Esta história foi contada por meu tio-avô, em uma das muitas vezes em que fomos para o seu sítio, no interior do Mato Grosso.

A noite era propicia para se contar histórias. O manto escuro da noite cobria o céu de maneira soberana, nem as estrelas tiveram permissão para sair naquela ocasião. O fogo crepitava muito alto e o calor nos invadia a alma, tal qual a fumaça maltratava os nos nossos narizes e olhos, nos roubando lágrimas que não queríamos ceder.

Contava o velho que tivera há muito tempo um caseiro que tinha o apelido de Manco, pois não tinha uma das pernas e andava mancando com o apoio de uma muleta velha e toda retorcida. Manco aparecera de forma misteriosa, em um dia de muita chuva. Ele vinha junto com a mulher e um menino, de expressão zombeteira.

Manco pediu abrigo, disse que vinha por estas terras a procura de emprego, pois fora demitido da última fazenda por ter perdido a perna em razão de uma chifrada que levara de um boi malvado. O dono do sítio o demitiu sem ressentimentos ou pesar.

Meu tio-avô seguiu a narrativa dizendo que se compadeceu da situação de Manco, concedeu-lhe abrigo e depois o trabalho de caseiro. A mulher de Manco o ajudava e o menino era um valente na lida com os gados e com os demais afazeres do campo.

Porém, certo dia o menino sumiu e todos se preocuparam. Percorreram as matas próximas, mergulharam no rio, procuraram nos poços e não acharam nada, nenhum vestígio do filho do Manco.

Passada uma semana inteira naquela agonia, avistaram em um dia de muito sol, o menino, que mais parecia um índio, pois sua pele avermelhada e o seus cabelos longos davam esta impressão, entrar no pasto andando despreocupadamente.

Manco tentou correr em sua direção, mas caiu, a emoção era tanta que ele nem se lembrou que só tinha uma das pernas. Levantou-se rapidamente e foi ao encontro do menino gritando o seu nome, que se perdia no ar, com a força do vento que do nada se formara.

Em pouco tempo meu tio-avô, meus primos, outros empregados do sítio e vizinhos vieram correndo para ver o menino e tentar descobrir por onde ele andava.

O filho do Manco estava com uma expressão saudável, mas cheirava a enxofre. Quando lhe perguntaram por onde havia andado ele sem cerimônia alguma disse que andara com o um ser de chifres, foi um alvoroço só. Os homens mais fanáticos que o rodeavam começaram a rezar em voz alta, outros saíram correndo sem olhar para trás, mas a verdade é que todos sentiram um frio na espinha.

O meu tio avô, que era um homem de fé não teve medo e pediu para o menino se explicar melhor, o que ele fez de pronto e sem maiores rodeios. Porém, ele foi até uma sombra de uma frondosa árvore e sentou-se. Em seguida começou a sua história narrar.

Disse o infante que andava pelo pasto a procura de ovos de galinha quando saiu deste mundo e entrou em outro totalmente diferente. Lá não tinha só um sol, mas tinha vários, as pessoas eram vermelhas e todas carecas com chifres em suas cabeças.

Ele continuou dizendo que logo chegou um homem de expressão indefinida, pois do seu rosto saía uma luz que o cegava, só deixando a vista dois enormes chifres. Este homem lhe pegou pela mão e o levou para pastos que ele não conhecia. Foram para lugares que eram diferentes de tudo o que ele conhecia. Caminharam de mãos dadas. Comeram frutas diferentes e deliciosas.

Ele disse que não se lembrava da despedida ou de ter por algum momento dormido, apenas se lembrava de ter ouvido aquele senhor dizendo que no pasto havia uma porta para aquele mundo que eu havia caído.

Em dado momento eu estava novamente nesta fazenda e ouvia sua voz como um se fosse em um sonho, dizendo: “até qualquer dia meu amiguinho, você ainda é muito novo para poder conversar comigo e ver o meu rosto, na verdade sei que você jamais será meu, mas outros cairão aqui através da porta que existe aberta no pasto, ainda que ninguém a veja”.

Foi isso, disse o menino, deixando todos profundamente intrigados. A história ainda não terminou aqui, pois certo dia chuvoso Manco foi embora com a família sem dar um adeus sequer. Segundo pessoas que viram a partida da família eles não iam só em três, mas em quatro. Existia mais um menino que ia de mãos dadas com o filho do Manco.

Quando o meu tio-avô entrou na casa em que Manco e a família ocupava a encontrou vazia de qualquer coisa, nenhum pano havia, mas ela estava profundamente limpa e cheirosa, um cheiro que demorou anos para sair.

Talvez esta história tenha sido só mais uma inventada pela mente fértil do meu tio-avô, mas se vocês vissem a expressão dele ao contar, aliada com o negrume do céu e o barulho natural feito pelos bichos a noite, também sentiriam medo, daqueles que nos persegue pelas esquinas da vida e nos assalta em horas impróprias.

Um comentário:

Obrigado. Fica com Deus.