domingo, 8 de agosto de 2010

A música


A música foi baixando, baixando até que nem um ruído mais se ouviu. Ele adormeceu naquele instante ou no instante seguinte, pouco vai importar para a compreensão da história que se segue.

A música era talvez sacra, talvez uma ópera, ou de qualquer outro gênero que profanasse os seus ouvidos, sem muito temor. Era uma música que ele ouvia no seu velho aparelho de som, repetidamente, uma vez após a outra.

A sua esposa detestava aquela música, os seus vizinhos idem, tanto que o incomodavam, o insultavam e protestavam contra aquele som, que sempre era ligado em alto volume. Durante anos ele ouviu aquela música e sentiu uma imensa felicidade invadi-lo. Apossava do seu ser uma esperança de conquista, de poder e de paz.

Com o passar dos anos, sua esposa se separou dele. Da união não houve filhos. Os vizinhos foram embora, e ele ficou só. Na verdade ele nem se importou muito. Comia comida enlatada. Às vezes encomendava uma pizza, um lanche ou qualquer outra coisa. Saia da sua casa apenas para receber o seu pagamento mensal, pago no dia 01 de cada mês pelo Governo, era a título de auxílio-pobreza, uma verba de caráter assistencialista. Nesta ocasião ele aproveitava para pagar suas contas de água, gás e energia.

Entre um minuto e outro sentia uma ansiedade e certa tristeza pelo abandono em que se encontrava, mas no final das contas aquela situação era bem melhor do que a chateação que recebia por gostar tanto da sua “música”, que em todos causava fastio.

Os anos passaram ligeiros e veio o momento em que suas pernas começaram a se enrijecer. Os seus braços tornaram-se vacilantes e ele percebeu que não era mais tão auto-suficiente. A velhice o abraçava sem ter ninguém para livrá-lo da opressão que era o apagar das luzes de uma existência.

As coisas nesta fase da vida, ao que parece, deixam de ter significados robustos e passam a ser mero cumprimento do cotidiano. No entanto a música que ele ainda ouvia o encantava. Aos seus ouvidos era uma canção linda, doce e que o deixava exultante, cheio de idéias douradas, era o seu combustível para o dia-a-dia.

Aos pouco ele foi ficando mais fraco. Antes de cair na cama, para não mais levantar ele ligou o aparelho de som para que repetisse a sua canção. Logo ele deixou de comer, parou de levantar-se da cama. Foi tomado por uma febre altíssima, que o tirava da sua pouca sanidade. Passou a delirar e durante uma tarde, de um dia normal, morreu.

Como ele não recebia visitas o seu corpo só foi encontrado algumas semanas depois do óbito, pelos homens da companhia de energia que foram até a residência do pobre morto para cortar o fornecimento. Eles chamaram e ninguém respondeu, mas eles ouviram uma música que ecoava dentro da casa e acharam estranho, pois um cheiro muito forte de putrefação estava no ar. Acionaram a polícia.

Após os procedimentos de praxe, o morto foi identificado como sendo João da Silva. Sem contatos com familiares e, sem amigos, desceu a mãe terra sem um aplauso, sem uma flor, sem um caixão, foi enterrado em uma mortalha, direto na terra, a fim de que o seu corpo fosse consumido mais rápido e aquela cova destinada à indigente fosse, assim, novamente liberada.

Durante os serviços de sepultamento os coveiros tiveram uma surpresa, o dia que estava ensolarado, torno-se nublado e ventos se formaram, o barulho das árvores parecia a execução de uma canção clássica, o espetáculo durou pelo tempo em que o pobre desconhecido era enterrado. Depois tudo voltou ao normal.

Sobre o fenômeno ninguém entendeu ou o correlacionou com o pobre defunto. Os olhos dos presentes estavam fechados para o mundo espiritual, que em festa recebia um espírito que acabava de cumprir seu aprendizado na Terra.

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