terça-feira, 28 de setembro de 2010

Casa da Gratidão


Ele caminhava, parava e sorria, o mundo estava lindo, há pouco ele havia sido liberto de uma prisão imensa, opressora e que sempre havia sido sua casa, não mera residência, porque residência, até aqueles dias, ele sequer tivera.

A sua visão estava embaçada, ele via milhares de pontos brilhantes no horizonte, era como se fosse ter outro ataque epilético, mas agora não importava, pois ele havia sido agraciado com a receita para a paz eterna.

O velho que dera a “receita” da tranquilidade, havia feito a gentileza após o almoço comunitário ofertado na Praça da Sé, por voluntários da Fraternidade Celeste. O idoso até disse que escreveria a “receita” em um papel e o mendigo que sabia ler e escrever aceitou a proposta e ganhou um papel pequeno, com letras trêmulas desenhadas caprichosamente, onde havia sido escrita uma palavra de oito letras que mudaria a sua vida.

O choro fácil transformou-se em pranto, daqueles que sacodem o corpo. Lavando a alma daquele jeito, acredito que muitos transeuntes poderiam confundir aquela cena pitoresca, pensando que aquele homem maltrapilho estava muito triste, mas era justamente o contrário.

Aquele mendigo tinha 41 anos, nenhum dente na boca, seu corpo estava extremamente sujo, seus cabelos, cortados por voluntários, ainda era negros, mas sem brilho, pois a sujeira imperava. Os bens daquele homem eram duas sacolas sujas e bem gastas. Em uma sacola havia um cobertor amarelo, bem fino, na outra sacola havia uma troca de roupa íntima, uma página de uma revista, onde aparecia uma bela modelo, de olhos levemente puxados e também algumas moedas, centavos de reais.

Nascido de mãe que não tinha residência fixa, que morava na rua, a sua sina foi parecida. O seu pai ele nunca conheceu, aliás, nem a sua pobre mãe, que ele nunca vira sã e que certo dia desapareceu, sabia dizer quem era o seu genitor.

Na adolescência praticou pequenos furtos, sua primeira experiência com mulher foi com uma prostituta, que morava também na rua e que vendia o corpo em troca de qualquer coisa, inclusive de drogas.

Assim ele logo aprendeu o traquejo da rua, mas os seus sentimentos eram péssimos, eram de ódio, raiva, rancor e desejo de vingança contra todos que tinham posses, esposas, filhos e que eram respeitados como cidadãos.

Durante anos tentou de tudo para sua vida melhorar, muitos homens de bem lhe falaram sobre maneiras de deixar a rua, de deixar a vida de mendicância e de invisibilidade para o mundo. Certa vez lhe falaram sobre Deus, mas ele achou muito ruim certos conceitos religiosos e detestou sobremaneira, a ideia de destino.

Com o seu jeito ele foi erguendo muros invisíveis, formou a sua própria prisão e nela trancafiou seus pensamentos, seu coração, suas vontades, seus mais íntimos desejos.

O seu corpo vagava, mas seu cérebro permanecia encarcerado. Começou a sofrer ataques epiléticos e quase sempre era socorrido por outros moradores de ruas, que o colocava de lado e deixava o seu corpo enraivecido se debater até cansar, enquanto a saliva escapava pelo canto da sua boca.

A libertação mental do mendigo veio naquele almoço. O idoso vendo aquele mendigo triste, com expressão resignada e vazia comer maquinalmente, se compadeceu de uma vida sem sentido. Então, o senhor esperou pacientemente que o mendigo acabasse e foi com ele conversar.

A conversa foi sobre a vida e como ser feliz. O mendigo começou a escutar por dó do velho, mas logo se interessou pelas coisas que o idoso dizia. O coração do mendigo, que era um “iceberg”, logo se aqueceu e depois de décadas ele pensou que poderia ter achado um caminho para as coisas mudarem, pelo menos não custaria tentar.

O velho conseguiu colocar na mente do mendigo que era preciso ter uma postura ativa diante da vida, que não importava tudo que havia acontecido no passado, sempre seria possível mudar o futuro e disse a palavra mágica para a felicidade, aquela escrita no pedaço de papel: “GRATIDÃO”.

O mendigo, como que por passe de mágica se convenceu da necessidade de ser bom em todos os segundos da vida, ter pensamentos corretos, otimistas, saudáveis e que deveria sempre, mas sempre mesmo ser grato por tudo e que ele, mesmo naquela situação de pobreza, possuía.

Ele refletiu e observou que tinha muitos motivos para ser grato: ele estava vivo, não passava fome, tinha ainda que na penúria absoluta, amigos etc.

Na verdade o convencimento do mendigo foi possível, porque o idoso voluntário disse ao mendigo que se ele fosse grato, ainda que embaixo de um viaduto e agradecesse ao universo pela oportunidade de mais um dia, bem como tivesse bons pensamentos e desejos de melhorar sua vida poderia ser igual ou melhor do que a daqueles homens considerados de sucesso na sociedade. O mendigo se animou como nunca conseguira se animar.

O bondoso senhor disse finalmente que se a gratidão não funcionasse não haveria perda. O mendigo então questionou como deveria fazer e o idoso passou dicas simples ao mendigo; imagine-se em uma vida boa, com uma família, com emprego digno e ajudando o seu próximo. Ao mesmo tempo sinta-se em paz, sem sentimentos ruins e o mais importante, jamais faça um gesto de amor, de carinho ou de solidariedade esperando algo em troca.

O diálogo durou muito tempo, quando o mendigo se despediu do idoso ele se sentia leve e começou a agradecer ao universo pela sua vida, pela comida que havia comido, pelo seu cobertor e por todos os dias que fora suprido por voluntários.

De repente, ele sentiu uma euforia se apossar de todo o seu ser, uma alegria indescritível e neste instante ele viu um envelope branco caído no chão, pegou-o e viu que tinha dinheiro e um monte de papéis cheios de carimbos. Do lado de fora do envelope tinha um endereço, mas ele ficou tentado em pegar o dinheiro e jogar os documentos na lata de lixo mais próxima, mas o seu estado de espírito o mandava tentar devolver o envelope. Então, envolvido com a onda de gratidão que ele queria adotar como lema da sua vida ele agradeceu ao universo pela oportunidade de ser bom.

Durante duas horas ele caminhou até chegar ao endereço que constava no envelope. Quando chegou já era noite fechada. Até parecia uma casa, mas a fachada toda iluminada indicava que era um escritório de câmbio, trocava-se dinheiro nacional por dinheiro de outros países. Em frente ao escritório havia uma praça pública. O mendigo, com um pouco de fome e cansado resolveu pernoitar por ali e no dia seguinte devolveria em mãos o envelope, decidiu que não esperaria recompensa, mas somente queria fazer o bem.

O sol raiou, as pessoas apressadas iam e viam e a casa de câmbio continuava fechada. Por volta das onze horas a casa de câmbio abriu e o mendigo até lá se dirigiu. Um homem, que havia o observado passar o portão logo veio ao encontro do mendigo e já começou a fazer ameaças contra ele, mandando-o sumir dali, disse que não estava em um dia bom, que para encher a cara dele de tiros ia ser rapidinho.

Então, o mendigo sem falar uma só palavra estendeu o envelope branco para aquele senhor raivoso, que ao ver o envelope mudou de cor, de branco avermelhado que estava passou para um branco opaco, sem brilho, pareceu que a cor lhe fugira do rosto.

O senhor branco então abriu rapidamente o envelope para ver o conteúdo e se tudo estava ali. Naquela noite ele havia feito promessa para mil santos, rogando para que o ajudassem a localizar a documentação e dinheiro, que ele perdera, daquele cliente que viria em sua casa de câmbio assim que ela abrisse, pois precisava viajar naquele dia, em um caso que envolvia muito dinheiro, poder e sobrevivência. Com o rosto em prantos, ajoelhou e agradeceu aos céus pela dádiva que recebera de Deus.

Depois de uns dez pais-nossos, uma dez ave-marias e umas dez orações espontâneas ele levantou-se e não viu o mendigo, também nem se importou, pois tinha certeza que era um anjo que estivera ali. Ele nem pensou que poderia ser um mendigo de verdade, uma vez que na sua concepção mendigos eram todos ladrões etc. Porém, ele entrou no seu escritório, fechou a porta e fez mais uma oração pedindo para Deus abençoar aquele anjo.

O mendigo saiu da casa de câmbio radiante, uma alegria começou a se formar em seu coração. Naquele dia um casal se aproximou dele e sem que ele precisasse pedir lhe deram dinheiro para ele almoçar e jantar. Aos pouco a sua gratidão foi aumentando e aumentando cada vez mais. As bênçãos foram crescendo e ele deixou de agradecer ao universo, pois agora ele agradecia a Deus.

Em poucos meses ele foi amparado por um casal de voluntários, na casa destes. Conseguiu um trabalho na feira livre municipal, vendia batatas e em pouco tempo tornou-se um feirante com banca própria. Começou a frequentar a igreja católica, ajudar nas obras assistências.

Cuidou da aparência e aos cinquenta anos casou-se com uma viúva, que não tivera filhos. Decidiram então adotar, adotaram três irmãos de uma só vez, dois meninos e uma menina. A “banquinha” da feira livre aumentou e logo ele estava com uma mercearia e depois com um supermercado. A sua esposa mulher muito esforçada só fazia aumentar seus lucros.

Em um belo dia decidiram montar uma casa para auxiliar os moradores de rua, criaram uma entidade sem fins lucrativos e a chamaram de casa da gratidão.

Todos os dias da vida o ex-mendigo, agora “seo” Jurandir da Fonseca Silva agradecia a Deus por tudo o que tinha e por toda a sua história de vida. Para comemorar tantas coisas boas decidiu conhecer um lugar considerado santo, Jerusalém, comprou as passagens e foi trocar os seus reais por dólares para poder viajar.

Quando parou em frente à casa de câmbio começou a chorar, sua mulher só veio a entender depois, era a casa de câmbio onde ele havia devolvido o envelope que ele tinha achado com dinheiro e documentos.

Na casa de câmbio ele não viu o senhor branco que havia recebido o envelope, mas foi tratado por uma recepcionista como doutor, tratamento que ele recusou e disse: ”por favor, eu não sou doutor sou apenas um analfabeto, filho de Deus”.

Em Jerusalém, andando pela rua ele encontrou um senhor que pelas feições, o fez relembrar daquele idoso da Casa da Fraternidade Celeste, neste instante seus joelhos dobraram-se e olhando para o céu ele teve certeza que aquele senhor era um anjo de Deus, com os olhos banhados em lágrimas lembrou que nunca mais tivera ataque de epilepsia, que sua saúde era de ferro, acabou por concluir que aquele anjo também trouxe a cura para o seu corpo, além da cura da alma. Descobriu, então, que não foram só as palavras do anjo que o fizera mudar, mas sim o amor de Deus em tocá-lo, como que dizendo: “eu te amo”, radiante ele ergueu as mãos para o céu e disse com dificuldade pela emoção do momento: “Obrigado Deus eu jamais vou merecer tanta bondade”. Obrigado...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado. Fica com Deus.