quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A primeira sombra livre


Certa noite eu caminhava tendo uma lua cheia por testemunha, a rua era bem iluminada, sem muitas árvores, mas possuía um imenso muro ao longo de todo o quarteirão, ali ficava uma escola.

A caminhada era agradável, o vento soprava um ar gelado e minha blusa era fina demais para segurar o calor do meu corpo. A rua estava silenciosa, no interior as pessoas dormem cedo, poucas pessoas caminham tarde da noite, mas eu perdera o sono e resolvera andar um pouco para a ansiedade passar e depois, talvez, conseguir dormir.

Com a mente vazia, sem pensar em nada eu olhava a minha sombra projetada na parede, ela serenamente caminhava ao meu lado. De repente, eu não vi mais minha sombra, achei estranho e olhei para trás, tomei um tremendo susto, pois vi a minha sombra parada no muro uns dez passos do local onde eu estava.

Na hora do incomum, o nosso cérebro fica “patinando”, tentando entender a situação, divaguei um pouco, hesitei em retornar onde estava minha sombra, pensei em correr, mas logo entendi que não havia perigo em abordar minha própria sombra, ela não tinha nem matéria, como poderia me fazer mal?

Um tanto assustado, um tanto curioso e o outro tanto confuso, olhei para trás mais uma vez e a minha sombra ainda estava estática. Fui até ela, mas confesso que doía ver a minha sombra antes tão companheira, agora tão arredia, distante, fria e até mesmo menos negra, o pior é que eu nem sabia como me dirigir a ela, na verdade eu nem podia saber se ela me observava, se me encarava, no seu rosto não havia olhos.

A sombra estava quieta, cabeça colada no tórax. Ela fumava um cigarro, comecei a ficar intrigado, pois eu jamais havia fumado, fiquei observando à fumaça que subia ao céu, vinda do cigarro que era fumado pela minha sombra, que despautério!

Observei atônito o desenrolar da cena, quando a minha sombra sentou-se, fiquei imaginando que maluquice era aquela, eu em pé e minha sombra sentada, com as pernas cruzadas, impassivelmente projetada no muro. De supetão, o rosto da minha sombra que nunca tivera olhos, nem nariz, começou a ganhar estas partes e logo observei um sorriso na face da minha sombra.

Eu tentei então estabelecer um contato, perguntei-lhe: “minha sombra, por que me abandonaste em noite tão bonita?”, em seguida me senti um tolo, ela não possuía cordas vocais jamais me responderia.

Ledo engano, a minha sombra com voz idêntica a minha respondeu: “cansei de te seguir, você anda muito, quero descansar ou então que você caminhe na mais perfeita escuridão para que eu possa de ti me ausentar”.

Neste instante me deu uma grande crise de riso, um riso nervoso, pensei meio delirante “poxa! A minha sombra estava querendo me abandonar, que sacanagem! Eu nunca a tratara bem, mas nem por isso havia menosprezado a sua presença, quando criança quantas vezes brinquei com ela e até mesmo tive medo quando ela ficava grande demais ou até mesmo com aparência fantasmagórica. Será que eu merecia este abandono?”.

Deplorando a situação em que eu me encontrava pensei em imitar a minha sombra, eu deixaria de ser o ator principal, o material, o objetivo, seria sombra da minha sombra, com este pensamento maluco sentei-me e comecei uma tentativa desesperada de resolver a situação, ser uma pessoa sem sombra seria terrível, eu achava que precisava dela, passei então a imitar os gestos da minha sombra.

A minha sombra que nunca tinha imaginado que um dia poderia ter uma sombra ficou tão aturdida quanto eu ficara a momentos atrás, quando ela parou de me acompanhar e logo ela me perguntou:”por que fica querendo ser sombra se você existe?” eu respondi : “cansei de existir, quero apenas subsistir sem ser pesado, mas leve e flexível”.

Um pouco cansado deixei as coisas como estavam, fiquei sentado defronte ao muro, com pernas cruzadas e a minha sombra, que agora era a pessoa que continuava na minha frente inalterada.

A noite foi passando, os primeiros raios do sol trouxeram um pouco de juízo para mim e para minha sombra, que um tanto quanto afugentada voltou a ser minha sombra. As coisas, outra vez, ao que parecia, haviam retornado ao normal.

Com as pernas dormentes levantei-me e voltei para casa, meus familiares acharam estranho a minha ausência sem avisar, mas eu nem me dei o luxo de explicar a noite que tivera e o problema de relacionamento com a minha sombra, estava cansado e me sentindo sozinho.

Desde então a minha sombra quebrou o gelo, deixou de ser taciturna, casmurra e tal, começou a conversar comigo. É claro que eu jamais contaria isso para alguém, pois seria difícil explicar como isso aconteceu, eu ia ter que explicar a situação com uma frase emprestada do Chicó do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna : “só sei que foi assim”.

Enfim, hoje eu entendo que a minha sombra precisava de mais liberdade, por isso a libertei. Neste dias que correm, através da sua própria vontade interior ela ganha contornos mais firmes e parte para explorar o mundo real, muito longe do ideal, mas divertido para que acaba de ganhar uma carta de alforria. Hoje, eu e a minha sombra somos amigos sem qualquer relação de subordinação, atingimos uma espiritualidade inimaginável para seres incompatíveis, mas que de alguma maneira se completam, somos livres no corpo e na mente.

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